Mulher-a-dias
Fui roubada a vida inteira, disse ela. Lembro-me vagamente (às vezes chego a pensar que foi um sonho), de uma mulher alta e alegre que me chamava menina, a sua menina, e me beijava. O desaparecimento dela foi o primeiro roubo de que fui vítima. Fiquei perdida no mundo. Claro que tudo cresce, mal, mas cresce. E eu cresci. Aos tombos, como é natural. E os tombos foram-se sucedendo. Roubaram-me a infância que não tive – sabe lá a idade com que comecei a trabalhar! – a casa, a família, a alegria de brincar e de aprender, a escola, o amor, pois claro. Até a recordação do primeiro namorado. Porque o primeiro (primeiro e único), deixou-me um filho. Aos dezassete anos e com um filho. O namorado, este desapareceu em três tempos. Não queria sarilhos, está bem de ver. E desejava ser alguém, já não sei em quê mas era numa coisa de desporto. Talvez fosse correr ou andar de bicicleta, como é possível que eu me lembre? Às vezes quando ouço no rádio o nome de tipos que ganham coisas, fico à espera de ouvir o nome dele. Por nada. Curiosidade. Até gostava que… Mas nunca ouvi. Não deve ter conseguido o que queria, coitado.
Não, não lhe quero mal, até porque a única coisa que não me roubaram, foi esse filho que é só meu. É tão bom rapazinho, é tão meu amigo. Dá-me tudo quanto ganha… Que eu também me mato a trabalhar a dias. Estuda à noite, sabe? Quer subir na vida e há-de subir, tenho a certeza. Se não fosse essa certeza que tenho, se não fosse isso… Casa? Casa nunca tive nem terei. Vivo com o pequeno num quarto, como havia de ser?
Não, nunca me casei nem pensei mais nisso. Aquele, o desportista bastou.
Revista Mulheres, nº6, Outubro 1978
Maria Judite de Carvalho